Ao raiar de Julho de 2020, a cada novo dia ressoavam em nossos ouvidos os versos inesquecíveis do rapper Criolo: “vamos às atividades do dia: lavar os copos, contar os corpos e sorrir a essa morna rebeldia.”
O óbvio ululante é que acostumar-se a “contar os corpos”, e só isso (sem indignação, sem comoção, como uma máquina calculadora) é uma indignidade que nos desumaniza. Como re-despertar a empatia em massa diante de cada um dos destinos fatalmente arrasados pela crise pandêmica em curso?
Segundo estatísticas oficiais, mais de 60.000 brasileiros já perderam a vida para a pandemia de coronavírus, descontada aí aquela que Léo Sakamoto chama de “pornográfica subnotificação”, denunciada em belo episódio de Greg News na HBO:
É eticamente inaceitável resignar-se à morte em massa (e também inaceitável conformar-se com as mentiras com que “podres poderes” vêm maquiando os dados oficiais). Esta resignação passiva, este aceitar sem impor protesto, seria conduta das mais culposas pois implicaria cumplicidade com a necropolítica, aliança com Tânatos. Pois nada fazer, em circunstâncias como estas que atravessamos, também implica fazer algo de terrível: ser cúmplice das autoridades (in)competentes que nos afundaram neste abismo, e que não parecem nem um pouco promissoras quanto às suas competências para nos tirar deste lamaçal sinistro.
Isso tudo indica que há situações, tanto na História quanto em nossas singulares vidas (realidades, aliás, entretecidas!), em que a virtude só pode ser sinônimo de revolta. “Eu me revolto, logo somos”, escrevia Albert Camus. É desse nós revoltado, mas sagaz e lúcido, que urgentemente necessitamos para refundar este país – ainda que precisemos reconstruí-lo a partir de escombros.
“Contar os corpos”, provoca Criolo, “sorrindo…”, numa “morna rebeldia”… é isso que o governo Bolsonaro parece desejar de nós. Ele quer que a gente olhe para a pilha de compatriotas que faleceu e diga “e daí?”. Ele quer nos mandar, sem máscara, para as churrascarias. Os mais abastados fiquem à vontade para dar um passeio de jet-ski. “E deixem a Verdade aos cuidados… dos milicos!” Eis o Bolsonarismo: quer nossa atitude de plácidas ovelhas dóceis, obedientes ao condão do “mito”, e que façamos como se tudo estivesse normal.
A fabricação de um normal fake em meio a uma crise humanitária monumental é hoje política de Estado – concretizada através, por exemplo, do aparelhamento, com dezenas de militares, do Ministério da Saúde. O leitor mais questionador já deve ter se assombrado diante da estranheza da presença de militares à frente do Ministério que deveria cuidar, não da guerra, mas da saúde e da vida…
Assim, a verdade nos está sendo sonegada, nosso direito aos fatos está sendo roubado, em plena luz do dia e com a cumplicidade de muitos dos “cidadãos-de-bem” que molharam os dedos de sangue humano ao digitarem, com ódio, aquele “17” nas urnas de 2018, fazendo arminhas com as mãos e urrando “mito!”. Vocês que haviam lido, nos livros de História, sobre os cidadãos que foram cúmplices do Holocausto, por exemplo, agora tem a chance de observar tal fenômeno diante de brasileiros nossos contemporâneos. O “colaboracionista” do genocídio veste camiseta verde-e-amarela da CBF, já idolatrou um Pato Amarelo inflável em plena Av. Paulista e hoje é fiel papagaio da palavra de seu Messias: “Cloroquina é milagrosa! Cloroquina sara tudo! Tomem cloroquina aos montes, e invadam hospitais para filmar leitos vazios!” Assim delira a seita necrofílica, em pleno transe de irresponsabilidade nefasta.
Brasil, 2020: sob o domínio de perversos psicopatas, voltamos ao Mapa da Fome. Não se fala mais em justiça social ou em um horizonte utópico de Fome Zero (isso é coisa de “petralha”, esbraveja o gado infectado com o vírus do fascismo). A palavra hoje em voga para descrever a criminosa irresponsabilidade do presifake é “genocídio”. Trump e Bolsonaro conduzem EUA e Brasil ao status de países sob catástrofe infindável. Milhares de mortes evitáveis são o novo normal. Quem cala… consente. Quem obedece… é cúmplice. Ainda bem, ainda existem brasileiras como Eliane Brum, capaz de arrancar lágrimas até dos corações de pedra ao evocar a vida e o martírio de Marielle Franco, além da sabedoria presente de Kopenawas e Krenaks, em um vídeo comovente que nos convoca a não sermos cúmplice do genocídio:
Diante de cenário tão calamitoso, podemos insuflar um pouco de entusiasmo e de disposição para o Paulo Freireano esperançar perante tantos exemplos maravilhosos de brasileiras e brasileiros que não se calam, que estão na luta, que não normalizaram nem se resignaram ao fascismo ou ao genocídio em curso. Neste sentido, por exemplo, Grupo de Ação (SP) – que conheci a partir de convite do Prof. Vladimir Safatle (USP) – vem a público declarar que voltará às ruas e elucida seus porquês:
“Aqueles que fingem nos governar gostariam de eliminar do povo brasileiro a capacidade de se indignar diante da morte. Este é o verdadeiro projeto de governo: naturalizar valas e mais valas com corpos de brasileiras e brasileiros, resultado do descaso e do escárnio; criar uma sociedade insensível ao desaparecimento; fazer deste país um cemitério de silêncio, sobre o qual reina a indiferença. O Brasil, construído em cima dos genocídios negro e indígena, assiste agora a mais uma onda de genocídio: o das camadas mais pobres e vulneráveis de nosso povo, morrendo sem direito ao luto e à dor e, se não morrendo, desesperado diante da miséria e do desemprego que o obriga a sair às ruas e “voltar ao normal”. Essa condição, novamente, atinge desproporcionalmente mais a população negra e indígena. Diante do mundo todo, o Brasil desponta não apenas como o epicentro da pandemia, mas como o epicentro dos mortos sem luto. Nenhuma sociedade pode sobreviver a isto.
Um governo, cujo verdadeiro horizonte é o sacrifício indiferente de seu próprio povo, não pode continuar sequer mais um dia. A pandemia colocou a céu aberto a máquina de morte que o impulsiona. Aqueles que aplaudiam torturadores, assassinos de Estado e milicianos especializados em extorquir o povo pobre não poderiam nos dar nada diferente disto. Aqueles que vieram dos porões mais sombrios da ditadura militar, das fazendas onde ainda se encontra trabalho escravo, das serras-elétricas que ainda pulsam com o ritmo colonial da conquista, dos bancos que veem esta terra apenas como um espaço de exploração, só poderiam ter como projeto de governo a naturalização da morte em massa. Contra isto, estaremos mais uma vez nas ruas e até que este governo neofascista e genocida caia.
Que nesta manifestação cada um e cada uma carregue uma foto dos mortos pela violência do Estado, seja ela produto da negligência no enfrentamento da pandemia, da violência policial, do massacre das populações indígenas, do desaparecimento na luta contra a ditadura. Que cada um e cada uma fale em alta voz o nome daquelas e daqueles que o governo quer que esqueçamos. Que façamos o digno luto daquelas e daqueles que o governo quer queimar no altar da economia para poucos.
Você é importante para esta luta. Este não é o destino de nosso país e podemos mudar essa história. Venha no dia 04 de julho, às 14 horas, diante do MASP. Este ato tem como premissa garantir a segurança de todas e todos dentro deste cenário, em que a mobilização se dá presencialmente. Respeite as medidas sanitárias de distanciamento e proteção. Venha lutar conosco! #ForaBolsonaro!”
Grupo de Ação
Email: grupodeacao2020@gmail.com
Face: grupodeacao/
Insta: @grupodeacao_
Twitter: @grupodeacao
Subscrevem:
Diversitas: Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e dos Conflitos (FFLCH-USP)
Gastronomia Contra o Golpe
Igreja Povo de Deus em Movimento
Rede Emancipa
Somos Democracia
Torcedores pela Democracia
MTST
No vídeo, cenas do 1o ato promovido pelo Grupo de Ação:
Publicado em: 03/07/20
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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